Benfica, um caso singular

Estive para escrever esta crónica há umas semanas, depois de mais uma vitória da equipa encarnada no campeonato, mas em conversa com um amigo ele sugeriu que só o fizesse depois do “grande teste” que seria a deslocação ao Vélodrome para defrontar o Marselha nos Oitavos-de-Final da Liga Europa, por isso mesmo esperei e aqui estou eu, não mais convencido do que estava, porque a equipa de Jesus já conseguiu esse título há muito tempo, mas ciente de que este ano pode ser um marco muito importante na história recente do clube.

A boa forma encarnada não se resume a isso mesmo, a um período, um tempo determinado, como alguns faziam querer parecer mas a um trabalho notável, a uma preparação e ideias capazes de tornar este Benfica numa das mais encantadoras equipas do Velho Continente. Em Marselha os pupilos de Jorge Jesus mostraram à Europa uma qualidade de jogo que nós por cá já conhecemos e que, mesmo com a proximidade pontual do SC Braga, não tem equiparável em Portugal. Qualidade que tem encantado o nosso futebol e que mesmo estatisticamente, entenda-se golos marcados e sofridos, faz da equipa da Luz uma das mais perigosas da Europa.

E tudo isto só pode provir de muito e bom trabalho e por isso mesmo é que me rendo a Jorge Jesus e à actual época encarnada, mais do que à carismática personalidade do técnico benfiquista rendo-me à qualidade de jogo deste Benfica, que acredito, e aqui está para mim a parte mais importante, terá uma qualidade de treino, uma orientação de jogo, construção de um modelo com princípios e sub-princípios sem dúvida alguma singular e de muita qualidade.

É nisto que acredito e é isto que quero desenvolver como treinador. Ainda no Belenenses e num discurso muito à sua imagem Jesus tentou descrever e dividir o jogo em cinco momentos, muito se riram do discurso mas a explicação do actual técnico benfiquista contempla todos os momentos de jogo e mostra que Jesus os percebe e sabe o que tem de fazer, chamando também a atenção para a construção de um bom plantel. Felizmente este ano teve todas as condições para poder desenvolver a sua “ciência”, e um plantel para poder trabalhar fazendo com isto uma época que mesmo sem ainda ter ganho o que quer que seja ficará na memória dos apreciadores de futebol.


Organização defensiva e transição ataque-defesa
Neste momento a equipa encarnada é a defesa menos batida da Europa, uma estatística bem interessante para uma equipa portuguesa, outra são os golos marcados e sofridos na época passada e esta época pelo Benfica no que diz respeito ao campeonato, com Quique os encarnados marcaram por 54 vezes e sofreram 32 golos, Jesus quando ainda faltam sete jornadas para o final da época leva já 60 golos marcados e 12 sofridos (uma média de 0,52/J, o que prevê cerca de 16 golos sofridos no final da época). É bom lembrar que Quique contava com praticamente os mesmos jogadores que Jesus para o processo defensivo, o que desde logo levanta questões no que diz respeito às diferenças. Mas estas são bem visíveis, a actual equipa da Luz é muito mais capaz e organizada defensivamente, defendendo à zona e percebendo todos os momentos de jogo este Benfica tem noções colectivas perfeitas, com a entrega de Maxi e a segurança de Luisão tranquiliza um sector esquerdo mais ofensivo com as subidas de Fábio Coentrão ou César Peixoto e as constantes movimentações ofensivas de David Luiz, sendo ainda fundamental o jogo de Javi García, que para além de importantíssimo em todo o jogo, assume um carácter decisivo na ocupação de espaços e coberturas. Em transição defensiva mantêm-se muito forte, implacável na pressão logo após a perda da bola, com quase sempre dois elementos nas várias zonas do campo, conseguindo tempo e espaço para construir a sua organização defensiva ou partir mesmo para transição ofensiva. Existem ainda muitos outros pormenores no processo defensivo encarnado, que fazem a diferença (obviamente), e que o tornam muito dificil de ultrapassar.


Organização ofensiva e transição defesa-ataque
Espanta pela qualidade de jogo ofensivo, pelos golos de Cardozo e Saviola, pelas movimentações de Pablo Aimar e pelos pormenores de Di Maria, mas a máquina ofensiva encarnada tem princípios que a tornam letal, não pelas individualidades mas por um colectivo fortíssimo, capaz e inteligente nos movimentos. Em organização ofensiva a equipa é dinâmica, desequilibradora mas equilibrada, sabe manter a posse e forçar o erro e é fortíssima nas transições, por tudo isso torna-se complicado distinguir todas as qualidades do futebol ofensivo dos da Luz. Jesus soube formar uma frente de ataque fortíssima, mas principalmente soube adaptar os seus recursos para um jogo de grande nível, consegue o equilíbrio e o pulmão com as maratonas de Ramires, dando espaço para o desequilíbrio de Di Maria fazer a diferença, tudo dinamizado pelos toques de Midas de Pablito Aimar, “El Mago” era para mim o melhor jogador a actuar em Portugal não fosse o seu corpo de porcelana sempre necessitado de gestão, mesmo assim é fenomenal, com e seu bola, a construir e a dinamizar uma máquina trituradora que tem na frente Saviola e Cardozo, dois avançados completamente distintos mas fundamentais, “El Conejo” Saviola é a par com Aimar um dos meus “meninos” e as constantes tabelas da dupla deixam qualquer um fascinado, Saviola renasceu para o futebol na Luz e é impensável como os seus movimentos, as suas recepções orientadas, os seus golos se esconderam na toca durante tanto tempo, felizmente voltou o mito do coelho que marca golos. Já Cardozo é uma das faces mais solitárias da equipa, compreendo porquê e sei que não é tão genial quanto os restantes, mas é útil e todos temos que perceber que as suas qualidades, apesar de pouco apreciadas são fundamentais em termos de eficácia, Jesus percebeu-o bem e tem conseguido tirar bom partido do “Tacuara”.


Bolas paradas
Jesus realça-o como o quinto momento e percebe-se porquê, quer defensiva, quer ofensivamente este Benfica é fortíssimo neste aspecto, tem pormenores muito interessantes como os jogadores em linha de mão dada e os pequenos saltinhos mas tudo isso são particularidades de um trabalho fantástico a nível do treino, mesmo aqui as percepções zonais do actual Benfica (do ponto de vista defensivo, claro) fazem toda a diferença. Em mais um aspecto muito capaz, presente em todas as equipas de top.


Em suma, não quero dizer que este Benfica é perfeito, nenhum modelo o é, e haverá sempre alguém que procurará provar isso mesmo, para além disso só hoje pode conquistar alguma coisa, não sendo certo que consiga qualquer título este ano, eu pessoalmente acredito que sim, porque acredito no bom futebol, acredito na qualidade e nesse aspecto o Benfica é neste momento uma onda imparável.

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá Boa noite!

Gostava que desenvolvesses um pouco mais sobre o processo defensivo e nos falasses sobre outros pormenores defensivos do mesmo processo.
Gostava que também referisses mais subprincipios ofensivos e defensivos desde modelo de jogo.
É que eu leio na net muito sobre isto mas não vejo ninguém aprofundar o tema, talvez para guardar segredo ou talvez porque muita gente não o perceba de verdade.
Falo assim mas não tenho nada a haver com a modalidade sou treinador de outro desporto, mas amante do benfica e gosto de discutir sobre modelos de jogo e principios e subprincipios, mas não sendo da modalidade tenho dificuldade em entende-los e ainda mais em identifica-los.

Abraço,

Jorge Morais

Dário Pinto disse...

Olá Boa Tarde Jorge,

Obrigado pela participação e pela pertinência do comentário.

Falar de um modelo de jogo, para quem acredita numa periodização de ordem táctica, como eu, é construir e planear cada pormenor da nossa equipa, identificar o que pretendemos, como lá chegar e o que podemos fazer com os recursos que temos. Em suma trata-se de criar uma identidade de equipa, definir linhas orientadoras de todo o jogo e dos seus processos mais singulares, abrangendo por isso mesmo também o treino.

Por todas essas questões não se torna fácil perceber cada modelo, até porque mesmo conhecendo determinada pessoa não sabemos tudo sobre ela, ficando essencialmente o mais visível, num modelo de jogo o mesmo se passa.

No actual Benfica vemos comportamentos claros, habituais e que caracterizam a equipa, são provenientes dos princípios e sub-princípios de jogo e é o que dão uma identidade tão singular à equipa. Na minha opinião Jesus pretende uma equipa com um futebol de alto nível, tem jogadores para isso e privilegia a construção em posse, mas constrói a equipa sabendo que pela sua organização é fortíssima nas transições ofensivas, por isso mesmo deixa espaço para algumas das suas individualidades acelerarem o jogo em determinados momentos, mas muitas vezes com bola faz descansar a equipa, conseguindo qualidade na posse de bola e esperando falhas no reduto adversário, consegue, ainda no plano ofensivo algo essencial na organização ofensiva, que é conseguir furar verticalmente a equipa contrária, fá-lo, por diversas vezes, com a inclusão de David Luiz na primeira fase de construção, onde atraí consigo um marcador e liberta em fase mais adiantada a bola para alguém conseguir, com espaço, dar dinâmica ao jogo, fá-lo também com as constantes tabelas entre Aimar e Saviola, que confundem a organização defensiva contrária e fazem a equipa benfiquista ter mais espaço para decidir o seu jogo, ofensivamente dá muito espaço à criatividade e imprevisibilidade de Di Maria, que muito mais desequilibrador que Ramires, no lado oposto, consegue meter mais uma velocidade no jogo encarnado.

Defensivamente acredito que a equipa o faz para atacar e por isso mesmo os princípios são claros, a defesa à zona está bem presente, até porque com esta organização defensiva torna-se bem mais fácil partir para a organização ofensiva, conhecendo o posicionamento de toda a equipa, para além disso dá à equipa uma segurança fantástica no ponto de vista defensivo, trabalhando muito bem as coberturas e equilíbrios defensivos, sendo essencial neste caso o trabalho e utilidade de Javi Garcia. Quando perde a posse, a pressão, princípio da transição defensiva, é feita de imediato, na tentativa de recuperar o mais cedo possível e dando também tempo à equipa para se organizar defensivamente. Para percebermos melhor até que ponto vão os pormenores, basta pensarmos na forma de defender as bolas paradas, as mãos dadas e constantes saltinhos têm uma explicação bem definida, ao obrigar os jogadores a dar as mãos Jesus cria desde logo uma linha de fora-de-jogo e faz com que a equipa respeite na perfeição o posicionalmente zonal pretendido, de forma que quando é necessário actuar a equipa encarnada ocupa as zonas pretendidas.

Em suma, não é fácil enumerar todos os princípios e sub-princípios, até porque estes partem da ideia de jogo do treinador e são demasiado específicos, o importante é saber identificar a qualidade do processo final e a partir daí tirar elações. Como técnicos é fundamental, primeiro, sabermos o que queremos, saber como queremos a equipa a jogar e a partir desse momento construir todas as bases para esse conceito.

Não sei se ajudei, se a pergunta vinha neste sentido, mas fica aberta a discussão, gostava imenso que me dissessem o que pensam sobre o assunto.


Um abraço!

Anónimo disse...

Olá boa noite!

Eu basicamente concordo com a exposição que fizeste acerca da periodização táctica, e pouco tenho a acrescentar.

De facto a construção do jogar de uma equipa é um processo que leva algum tempo (mais ou menos dependendo de vários factores como metodologias, jogadores, condições de treino, entrega ao treino... ), mas no meu entender e na experiência (pouca ainda) que tenho, é também um processo muito pessoal.
Não há dois treinadores com a mesma ideia de jogo, assim como não há também uma só forma de atingir um objectivo. Aliás considero esta condiconante transversal em termos de desporto ou outra actividade humana. É por isso que o treino é muito mais complexo e dinâmico do que se possa pensar.

Penso que aqui poderá estar uma razão para o facto do assunto princípios e sub-princípios não ser muito detalhado, porque é uma questão pessoal, e como tal nem sempre compreensível ao entendimento dos outros. É daqueles tipos de coisas, "penso assim, vejo as coisas assim e tento aplicá-las" mesmo que todos pensem diferente de mim.

Em alta competição é óbvio que esmiuçar um modelo, os seus principios e sub principios seria também uma ajuda aos adversários.

Cada vez mais compreendo o que J.Jesus quis dizer quando disse algo parecido com, "por vezes sinto-me a Paula Rêgo, que pinta um quadro que ninguém percebe o que ali está, e para ela é tão definido e concreto"

Cumprimentos
Rafael Antunes